c45 graus. O nome de Deus é Redentor. Da janela, porém, só se vê braços abertos. Lá não dá para chegar sequer para fazer uma prece. É só para turista tirar fotos. Subir mais um morro? Não. Aqui embaixo já tem morro demais, se bem que muito diferente do Corcovado, onde a gente sobe de trenzinho e escada rolante.
Lá está ela, como todos os dias, chegando do trabalho pesado de levantar às 5 da manhã e passar o dia inteiro fora vendendo balas e doces na Central do Brasil. Dizem que a mulher se parece com a virgem Maria, mas esta é o próprio Cristo crucificado. Duvidam? Peçam para apalpar-lhe as mãos e os pés. Verão as marcas dos pregos, verdadeiras crostas de calos. Só não falem nada de Deus, porque ele parece ter abandonado essa gente cuja voz não cansa de clamar “Eli, Eli, lama sabactani”.
De pele negra, esta mulher conhece bem o seu caminho até o Calvário. Ao chegar à favela, é preciso verificar se os traficantes não estão trocando tiros com a polícia, porque na semana passada, ela visitara uma amiga em coma, vítima de uma bala perdida. As chibatadas dos soldados romanos nem chegavam perto de um tiro de fuzil. Esse é para matar. Se pegar, já era. Fim de semana o caveirão costuma subir o morro com vários fuzis. É um carro-forte blindado da polícia que vai atirando para todos os lados. Inteligência burra. Vez ou outra se vê crianças sendo mortas por esta barbárie. Ela sabe bem o que é perder um filho. Toda vez chora quando olha para a foto de Preto, seu filho mais velho que sonhava em ser advogado. Era sexta-feira quando foram buscá-lo, acusando-o de ter aberto o bico. É! A polícia descobriu uma boca de fumo que rendia muito dinheiro ao tráfico de drogas. Alguém fez questão de passar o mapa da localidade. Foram pedir desculpas para a mãe um dia desses, pois descobriram que apagaram o cara errado. “Pô tia, o Preto era igual ao X9 que nos ferrou!”, diziam os dois rapazes de cabelos pintados com água oxigenada. Ela, sem força alguma, quis gritar, mas não pôde. Não fora capaz nem de enterrar o filho, já que ele morrera queimado em meio a pneus.
À noite, na hora de dormir, ela lembra de dar um beijo em Gabriela, um anjo que veio do céu para consolá-la. Depois que seu marido morreu, também assassinado, só que dessa vez por causa de uma dívida, ela ficaria sozinha não fosse a barriga que estava crescendo já no início do segundo mês de gravidez. O aborto seria uma solução viável para uma jovem de 25 anos, mas ela não tinha dinheiro para isso. Nesse dia, ela havia ido à uma igreja a convite da vizinha que vivia dizendo: “você tá precisando de Deus pra te proteger”. Na favela não tem padre, como no Nordeste, sua terra natal. Restou-lhe procurar “os crente”. Estes têm aos mil. Vivem querendo expulsar demônio do povo. Não têm medo dos traficantes, que de vez em quando até aparecem por lá para pedir oração ao pastor. Nada muda, mas ela se sentiu aliviada para enfrentar a dura realidade de uma vida cada vez mais difícil.
O dinheiro está em falta. 100 reais é o que tem da semana toda. Já contou e recontou as notas de um e as moedinhas. Queria tanto colocar Gabriela na creche, mas vai ter de continuar deixando-a com a vizinha que cobra 20 reais por mês. As lágrimas caem em cima do mingau de fubá, única refeição que pode fazer com o que tem. Seu choro não apaga as marcas do seu sofrimento. Ela sabe que amanhã tudo começa novamente. Ela, além de subir o Gólgota com a cruz, precisa descer com o madeiro nas costas. A via dolorosa será a mesma, ida e volta, todos os dias.
3 de abril de 2007
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4 comentários:
Pensei ser apenas mais um texto...Realizei o meu dia ao ler que por vezes aquilo que parece não é!
Obrigado por esta "chapada" para seguir em frente...
É. Tem gente com uma cruz bem grande!
Isso me dá força para levar a minha, que é bem pequenina comparada com essa!
Felipe!!
Que relato...hoje estou para chorar mesmo, mais uma vez tive que chorar! Que Cruz pesada!
Quqero também dizer-te que fiquei muito feliz por te teres juntado a nós!!!
beijinhos pa ti!
:)
Amigos,
Durante a leitura do seu texto vi-me arrepiado mais de uma vez.
Você nos revelou aquela conhecida via dolorosa tupiniquim - o declive acentuado, e na boca de nossa mulher as palavras desesperadas de Jesus: “Eli, Eli, lama sabactani”. É que o Domingo nunca chega, senão, vez ou outra, como uma ilusão, desfeita em cinzas na quarta feira.
Vou me recordando aqui de outras histórias semelhantes que ouço, diretamente da boca de gente que sofre com essa via crucis que parece não ter fim.
Uma menininha uma vez me disse que o pai havia morrido do coração, depois me explicou, com uma naturalidade desconcertante, que a polícia havia atirado nele - no coração. A mãe me disse depois que ela, a menininha, chorava muito a morte do pai e sofria de epilepsia.
Há também a história da mulher que foi parar no hospital por beber soda cáustica. Era viciada em alcóol, bebia todo o salário e quando acabava a grana bebia o desodorante, o álcool. Uma vez bebeu a soda cáustica e teve graves complicações.
Ontem, outra história. O homem, humilde e com olhos tristes veio até a biblioteca pedir orientação para o futuro "doutor". O empregador não tinha pago o que o devia e ainda retia sua carteira de trabalho, sem a qual era impossível sacar o FGTS.
Porque o Domingo não vem logo? “Eli, Eli, lama sabactani”
Parabéns pelo post, Felipe. Dolorosamente real.
Gostei do novo blog. Vou incluir no meu tour.
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